Lei Rouanet
Rouanet: O problema não é a lei!
Rouanet: O problema não é a lei!
Lei Rouanet: de ferramenta para democratizar a cultura à perpetuação de privilégios.
Lei Rouanet: de ferramenta para democratizar a cultura à perpetuação de privilégios.

A Lei Rouanet, em sua concepção original, foi um gesto quase poético em prol da cultura brasileira. Nasceu com a missão de alimentar o sonho de artistas espalhados pelos rincões do país, de dar vida a projetos que, de outra forma, talvez jamais saíssem do papel.
Uma promessa de que, finalmente, a nossa arte, tão rica em sua diversidade, teria o respaldo necessário para florescer, independente de sua origem, tamanho ou fama.
Porém, como tantas outras iniciativas nobres, a Lei Rouanet foi capturada pelos interesses de uma minoria, desviada de seu caminho para se tornar um instrumento de perpetuação de privilégios.
O que vemos hoje é uma distorção dessa nobre intenção. Artistas já consagrados, cujos nomes são repetidos nos palcos mais brilhantes e nas telas mais caras, acabam dominando a captação de recursos, enquanto os pequenos, os anônimos, aqueles que verdadeiramente precisam de apoio, lutam para sequer serem ouvidos.
A promessa perdida
A promessa da Lei Rouanet era clara: democratizar o acesso à cultura e proporcionar uma plataforma para que talentos emergissem, independentemente de onde viessem. Mas o que se vê hoje é um sistema que privilegia os já estabelecidos, aqueles que já possuem acesso aos grandes patrocínios e ao estrelato.
Quem tem nome, tem também o poder de atrair as grandes corporações, que por sua vez, preferem associar suas marcas a projetos de grande visibilidade, garantindo assim maior retorno de imagem. E quem paga o preço dessa lógica comercial? O pequeno artista, aquele que vive nas periferias culturais, nas franjas do sistema.
Seja o músico de uma cidadezinha do interior, o poeta das ruas urbanas ou o grupo de teatro de uma comunidade afastada, todos esses têm em comum a dificuldade de acessar os recursos da lei.
Sem grandes nomes, sem a visibilidade midiática, sem as conexões nos círculos de poder, eles ficam de fora desse grande banquete cultural, assistindo à distância enquanto os recursos são monopolizados pelos gigantes.
A distorção dos recursos e o impacto no público
Agora, vejamos a questão central. A Lei Rouanet não retira, de forma direta, dinheiro dos cofres públicos. Isso é verdade.
Mas o que poucas pessoas entendem é que, ao permitir a renúncia fiscal — ou seja, o direcionamento de impostos que iriam para o governo a projetos culturais —, a lei está, sim, impactando o orçamento público.
Dinheiro que poderia ser destinado à educação, saúde ou segurança deixa de entrar nos cofres do Estado, e quem sofre com isso? Exatamente, o cidadão comum, que depende desses serviços.
Imagine uma escola pública sem verba suficiente para comprar materiais ou manter suas instalações; um hospital que falta medicamentos ou profissionais; uma comunidade que sofre com a falta de segurança.
Todos esses problemas poderiam, de alguma forma, ser atenuados se os impostos que deveriam ser recolhidos fossem integralmente destinados ao bem comum.
Mas, ao contrário, vemos grandes montantes indo parar nas mãos de artistas que já possuem o conforto da fama e dos grandes palcos.
Aí está a ironia: enquanto esses famosos recebem apoio para suas grandes produções, a arte dos pequenos — aquela que mais necessita de incentivo, que nasce nos cantos escondidos do país, que carrega as verdadeiras cores da brasilidade — continua sufocada, sem visibilidade, sem recursos, sem voz.
O desvio da cultura
E há mais. Quando a cultura brasileira, em toda sua vastidão e riqueza, é deixada nas mãos de uma elite artística, algo precioso se perde. A arte que emerge das periferias, dos interiores, das tradições orais e dos saberes populares, acaba sendo ignorada.
A diversidade cultural que tanto nos orgulha, pouco a pouco, se esvai diante dos interesses mercadológicos que transformam a arte em espetáculo para as massas, esvaziando-a de seu verdadeiro valor social e histórico.
A Lei Rouanet, quando foi criada, prometia ser uma forma de valorizar essa pluralidade, de garantir que cada canto do Brasil pudesse expressar sua voz, sua história, seu talento.
Mas hoje, vemos uma inversão completa desse propósito. A arte que deveria ser acessível a todos, que deveria brotar das mais diversas fontes, fica cada vez mais concentrada nas mãos de uma minoria.
O que fazer com essa lei?
A importância da Lei Rouanet não pode ser negada. Ela tem, em essência, uma função vital: apoiar a cultura brasileira, garantir que nossa arte continue a existir, a se expandir e a se transformar.
Mas para que essa função seja cumprida de forma justa, é necessário reformar profundamente a maneira como ela é aplicada. É preciso redistribuir o acesso aos recursos, criar mecanismos que garantam que os artistas menores, aqueles que representam a verdadeira alma da nossa cultura, possam também participar dessa partilha.
Os critérios para a concessão de incentivos precisam ser repensados, priorizando aqueles que ainda não têm visibilidade, aqueles cujas obras não chegaram aos grandes palcos, mas que carregam em si o potencial de transformar, de encantar e de educar.
Afinal, não é apenas nos grandes centros urbanos que a cultura vive. Ela está em cada canto do Brasil, nas comunidades indígenas, nas vilas de pescadores, nas festas de rua e nos saraus improvisados. Essa cultura também precisa de incentivo.
O futuro da arte brasileira
O Brasil é uma terra de histórias, de cores e de sons que não podem ser silenciados.
A Lei Rouanet deveria ser um instrumento para preservar e celebrar essa riqueza, mas enquanto continuar a beneficiar apenas uma elite artística, nossa cultura estará fadada à repetição e à mesmice.
O pequeno artista, o desconhecido, aquele que carrega no peito o desejo de expressar seu mundo, precisa ser ouvido. E para isso, precisamos de uma lei que seja, de fato, democrática e acessível a todos.
Que a Lei Rouanet se torne, um dia, o que sempre prometeu ser: um farol para todos os artistas brasileiros, e não apenas para os já consagrados. Que a arte, em todas as suas formas e origens, seja celebrada como merece, e que a diversidade cultural do nosso país seja respeitada e incentivada.
Porque, no fim das contas, é a arte que nos define como nação, que carrega em si a alma do Brasil. E essa alma não pode ser monopolizada por poucos, ela pertence a todos.